Calvino nos fala que “discutir arte sob o ponto de vista de seu movimento criador é acreditar que a obra consiste em uma cadeia infinita de agregação de ideias, em uma série infinita de aproximações para atingi-la” e quem sabe, alcançá-la, atravessá-la. Assim como o parto, muitas vezes faz nascer também um pai, uma mãe, entender a complexidade desse processo é um dos pontos fundamentais no nascimento de um artista. Este ano, dois workshops do Paraty em Foco tratam, de maneira complementar, sobre o processo de criação: Caminhos da linguagem pessoal, de Christian Rodríguez, e Câmera e atitude – A fotografia enquanto discurso artístico, de Rodrigo Braga.
Se pensarmos em processo de criação na fotografia, que consciência desenvolvemos a respeito do processo que nos impulsiona a criar? Talvez não seja difícil saber do desejo e do que nos leva a fotografar, mas como é possível conhecer e aprofundar a própria linguagem?
Uma das primeiras questões é a querela entre a fotografia e a arte – polêmica que acreditamos estar, em muitos questionamentos, superada, mas que ainda rende algumas reflexões. Pensar sobre os limites da fotografia no mundo contemporâneo se faz necessário e as perguntas que Rodrigo Braga traz para iniciar a proposta do seu workshop são bem pertinentes nesse caso: onde a fotografia e a arte se encontram? Onde e por que se distanciam? Há especificidades entre a arte do fotógrafo e a fotografia do artista?
Responder diariamente a essas questões talvez seja um caminho de amadurecimento dos nossos propósitos fotográficos, dos nossos objetivos, dos nossos tensionamentos. Pensar no processo de criação e na articulação com uma narrativa fotográfica pode se apresentar como o passo seguinte. A uma visão muitas vezes superficial que identifica o processo criador apenas como originário de uma inspiração concretizada na criação – do caos inicial para a perfeição da obra de arte – Cecília Almeida Salles, no livro Gesto Inacabado, comenta que esta perspectiva “contém uma linearidade que incomoda aqueles que convivem com a recursividade e a simultaneidade desse fenômeno. Seria uma forma limitadora olhar para esse trajeto. Uma representação que não é fiel à complexidade do percurso.”
Em contrapartida à ideia de inspiração, encontramos o processo de arte como forma provisória, diante dos enfrentamentos de erros e dos potenciais ajustes. É uma poética de rascunhos que repercute num movimento criador e culmina numa obra eternamente inacabada – cadeia infinita de agregação de idéias, como bem diz Calvino.
É importante compreender o próprio ato criador, como ele se dá, como é realizado o planejamento, a materialização e o crescimento da obra. Cecília ainda nos fala que uma obra de arte surge ao longo de um procedimento complexo de apropriações, transformações e ajustes que auxiliam a criação. Não há um manual, nem um roteiro preestabelecido de criação, no entanto, é importante olhar para os recursos e para a forma como eles são utilizados, quase como se fosse uma outra obra de arte, que deixa vestígios pelos caminhos.
Esses vestígios, que podem ser textos, rascunhos, esboços, cadernos de artistas, projetos, roteiros, entre outras coisas, nos ensinam a utilizar o tempo, tanto na construção, como na maturação da obra. E como se mede o tempo de uma obra de arte? Elida Tessler, na apresentação do Gesto Inacabado, diz que por menor que seja o intervalo entre a intenção e a realização, é ali que a criação tem lugar.
Um projeto poético não se resume apenas numa sistematização do processo de criação, ele também é composto das relações que estabelecemos com o mundo, dos valores do artista, dos seus princípios éticos que estão lado a lado aos propósitos estéticos.
É a partir deste tipo de questionamentos e entendimento das experiências individuais de cada um que Christian Rodríguez, diretor do Festival Internacional de Fotografía San José Foto (Uruguai), irá explorar as capacidades narrativas e a busca por uma linguagem autoral em seu workshop no PEF.
Afinal de contas, muito dificilmente se inicia uma obra com a compreensão total dos próprios propósitos, se assim o fosse, não haveria espaço para o desenvolvimento, para vida e para o crescimento da arte. O processo de criação carrega em si uma sensação de aventura e cada etapa é um ponto de partida e não uma chegada.
O poeta Antonio Machado nos diz: Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. E assim construimos os caminhos de uma linguagem pessoal, através das nossas narrativas, renovando também o nosso repertório visual e mergulhando no caráter simbólico e estético de nossas práticas.