Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, Evandro Teixeira foi chamado pelo capitão Leno, seu amigo, para fotografar a movimentação que tomava o Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. Sobre isso ele escreveu:
“Nessa noite, o telefone tocou na minha casa, do outro lado da linha estava o capitão Leno, meu amigo de vôlei de praia, dizendo que o Forte estava sendo tomado. Peguei a minha Leica e fui para lá. Com a ajuda do capitão, consegui entrar com a máquina escondida por debaixo da camisa e dessa maneira pude fotografar a movimentação dos militares debaixo de uma chuva torrencial. Até pensaram que eu fosse fotógrafo do Exército Brasileiro! Pouco depois, o general Castello Branco chegou e senti que era hora de deixar o recinto”.

Eric Gomes, 2014
Hoje, 50 anos depois, recebemos fotos e informações sobre a ação da polícia no Cais José Estelita, uma área de interesse social da cidade do Recife, ocupada pelo batalhão de choque, em descumprimento de todos os acordos firmados com a Secretaria Estadual de Defesa Social e com a Secretaria Estadual de Direitos Humanos, bem como com o Ministério Público. A reintegração de posse foi feita com homens armados e cavalaria a lidar com os manifestantes com bala de borracha, chicote, bombas de efeito moral e spray de pimenta. A cobertura mais intensa passa não pelos meios de comunicação tradicionais – as imagens do que acontece ali nos chegam pelos fotógrafos inseridos. A história da imprensa brasileira se confunde com a história das forças militares e agora também, das empreiteiras e outros grupos de poder.
Na década de 70, o mais importante projeto do governo João Goulart, as reformas de base, também representavam uma ameaça às classes dominantes. “O homem do campo, esquecido e ignorado durante séculos, vê surgir no horizonte de nossa terra uma esperança de melhores dias“. A distribuição de renda e terra eram vistas como um passo ao comunismo e uma ameaça à liberdade e ao direito do cidadão. Perceber “a hora de deixar o recinto”, como fez Teixeira na sua cobertura do dia D do golpe, foi um sentimento que guiou diversos músicos, jornalistas e poetas a deixarem o País nos anos seguintes, se protegendo do controle ditatorial à produção intelectual brasileira.
Nesse contexto, a imprensa, mais do que uma testemunha, desempenhou um papel de protagonismo. “A fotografia teve um papel fundamental na ditadura militar”, lembra Teixeira, fazendo referência às grandes coberturas das manifestações contra a ditadura. Fotos emblemáticas como a imagem de Herzog tendo supostamente cometido suicídio em sua cela foram fundamentais para que o contexto pudesse ter sido analisado criticamente. Muitas dessas imagens ajudaram e ajudam até hoje a reescrever a história desse período que, para alguns, continuou sendo admitido como a “revolução de 64”.
Hoje, 50 anos após o golpe, o Paraty em Foco abre seu espaço de debate para discutir a referência histórica que essas fotografias representam, recebendo, na mesa “Fotografe Melhor”, as presenças de Evandro Teixeira e de Nair Benedicto.
Forte referência estudantil, nos anos 70, quando estudava na USP, Nair foi uma das responsáveis por alimentar os arquivos documentais que hoje temos sobre os últimos anos da ditadura, tendo se dedicado também a fotografar os grupos marginalizados que não faziam parte ou eram contemplados pelos grupos de poder da época, como povos indígenas e crianças em vulnerabilidade social. Presa pela ditadura, sua história se confunde com as de tantas pessoas que viveram o período em luta por um contexto que respeitasse as liberdades individuais e os direitos do cidadão.
Cinquenta anos depois, essas histórias continuam se confundindo com a de jovens como Karinny de Magalhães, integrante da Mídia Ninja, presa na última quinta-feira (12), quando transmitia ao vivo a manifestação contra a Copa do Mundo em Belo Horizonte. Detida sob a acusação de dano ao patrimônio, Karinny prestou depoimento dizendo ter sido espancada por cinco policiais até perder a consciência.
O Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), por meio da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Apoio Comunitário e Controle Externo da Atividade Policial, expediu recomendação para as forças de segurança do estado a fim de que “sejam tomadas medidas para garantir o direito de ir, vir e permanecer e o livre exercício da profissão dos repórteres e jornalistas que estejam cobrindo qualquer evento, especialmente, no contexto de possíveis manifestações, independentemente de estarem credenciados ou vinculados a empresas jornalísticas”. As informações são da Agência Brasil.
O caso teve grande repercussão nas redes sociais, espaço de atuação de veículos de mídia independente, como a Mídia Ninja, com atuação rápida e bastante pulverizada. É o reflexo de uma série de cerceamentos de liberdade que têm levantado questionamentos sobre o papel da imprensa oficial e as alternativas levantadas por esses veículos de mídia de atuação independente.
Por esses novos espaços, fotógrafos, jornalistas e qualquer cidadão têm a oportunidade de atuar como Evandro e Nair atuaram nas décadas de 70 e 80, na contramão das vozes oficiais, muitas vezes apoiadas pela ditadura. São esses sujeitos que nos colocam em contato com pontos de vista alternativos e nos fazem conhecer histórias como as vividas em Pinheirinho, nas manifestações em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro. Histórias de pessoas que diante da perda de diversos direitos reivindicam ainda o direito à liberdade de expor o que lhe foi tomado, criticar e lutar contra essas novas realidades. Hoje, 50 anos depois, pessoas se encaminham ao Cais José Estelita para atuar como meios de comunicação, informar a população e lutar pelo nosso direito à cidade. A liberdade é o estado da pessoa livre, mas sem direitos não é possível ter liberdade.