Fiquei alguns dias pensando sobre o que escrever aqui no #Diálogo. Várias idéias surgiram, várias idéias foram embora. Até que em um plantão de domingo, no Jornal do Commercio, cobrindo o enterro de uma jovem de 20 anos que foi assassinada pelo pai, que depois acabou se matando, em diversos momentos eu me perguntava “paro de fotografar e abaixo a câmera?”. E é esse meu dilema, que na verdade acredito que seja um dilema da profissão de fotojornalista, que trago para essa conversa no 7.
O fotojornalismo é uma profissão muito, muito instigante. No pouco tempo que estou “na rua” já vivi situações, conheci lugares e pessoas que muito provavelmente eu não conheceria se não fosse fotojornalista. Diariamente a gente se depara com as mais diferentes histórias, das mais bonitas e às mais dolorosas, ser testemunha dessas histórias e poder contá-las através de imagens é uma experiência muito rica e gratificante. Mas como tudo tem seu bônus e seu ônus, nem sempre é fácil e nem sempre é confortável vivenciar tudo isso com uma câmera nas mãos.
Uma das situações que acho mais difíceis de se fotografar são os enterros, principalmente, os relacionados a violência . O profissional está ali, de certa forma invadindo aquele espaço, aquele momento de tristeza, de dor, do sofrimento da perda, do inconformismo, da revolta. É difícil não se sentir desconfortável, é difícil buscar boas imagens sem ser notado, sem ser indelicado, porque por mais que você tome cuidado em ser sutil, a sua presença ali muitas vezes é encarada para os familiares e amigos do morto, como um desrespeito. Já perdi as contas de quantas vezes me chamaram de urubu e já perdi as contas de quantas vezes me senti como tal. Mas tenho meus limites, nem sempre consigo respirar fundo, ignorar os olhares duros e continuar fotografando. Tem hora que preciso abaixar a câmera e respeitar aquela dor. Mas ai surge o meu grande dilema: e se eu chegar no meu limite e abaixar a câmera e o fotógrafo da concorrência não?
Já vivi isso diversas vezes. E em muitas delas tive que passar dos meus limites pra não perder “A” foto. É inevitável falar desse assunto e não lembrar dos depoimentos incríveis dos fotógrafos Greg Marinovich e João Silva no livro (obrigatório) O Clube do Bangue-Bangue, que relata a cobertura fotográfica dos conflitos civis que marcaram o período de transição entre o apartheid e a república democrática, com a eleição de Nelson Mandela para presidente, na África do Sul. Nunca vivi nada nem parecido com o drama de uma guerra, mas Greg Marinovich levanta um questão que tem muito a ver com essas situações de limite que os fotógrafos vivem no dia a dia de um jornal:
Tragédia e violência certamente geram imagens poderosas. É para isso que somos pagos. Mas cada uma dessas fotos tem um preço: parte da emoção, da vulnerabilidade, da empatia que nos torna humanos se perde cada vez que o obturador é disparado.
Não me sinto menos humana a cada click que dou em uma pauta difícil. Pelo contrário, busco ainda mais a minha humanidade e o meu respeito pelo ser humano. Em em todas as fotos que faço tento passar isso. Lembro muito de uma pauta bem dolorida que fiz, o enterro de Robson, um menino de 13 anos que tinha sido atropelado na frente da escola. As pessoas, principalmente crianças, estavam muito emocionadas no velório e isso mexeu bastante comigo. Teve um momento que subi em uma sepultura, porque tinha muita gente e eu não tinha ângulo pra fotografar de baixo, e uma senhora gritou pra mim: “mas é um urubu mesmo!”. Engoli seco, continuei fotografando, depois desci da sepultura, me afastei um pouco e tentei me acalmar. Eu estava visivelmente mal com aquilo e uns cinco minutos depois, a mesma senhora se aproximou e me pediu desculpas falando: “Não é fácil pra senhora estar aqui, não é? Estou vendo que a senhora tem coração, me perdoe”. Fui embora daquela pauta pensando muito no meu papel de fotojornalista e nos meus sentimentos enquanto fotógrafa e pessoa.

Enterro de Robson Barbosa, de 13 anos, que morreu atropelado por uma Kombi na frente da escola onde estudava | Priscilla Buhr
As cenas fortes são extremamente fotografáveis, isso é um fato. Uma fotografia de um choro desesperado, um desmaio emociona o leitor. Mas existem formas e formas de se fazer essa imagem. Sem falar, que não dá para passar por cima de tudo para se conseguir uma fotografia digna de prêmio. Nós estamos lidando com pessoas, com sentimentos, não da para simplesmente ignorar isso. Daniel Cornu no livro Jornalismo e Verdade diz, de maneira bem dura, que “o jornalista que seja tentado em tais circunstâncias a esquecer o respeito que deve ao outro, vítima, testemunha, parente, espezinha o respeito que deve a si mesmo: não é mais que instrumento – meio! – da informação. Está reduzido à função que o sistema mediático lhe atribui. É prisioneiro de um determinismo reificante, de que seu próprio cinismo não é capaz de o libertar (…)”. Abaixar a máquina, pra mim, é antes de tudo respeitar a si mesmo. Tem horas em que a gente precisa recuar e pronto. A minha hora talvez não seja a mesma do fotógrafo ao lado e muitas vezes não é, porque cada pessoa reage de um jeito diferente diante dessas situações. E eu não quero dizer com isso que um fotógrafo seja mais sensível ou humano do que outro, de jeito nenhum. O limite de cada um é diferente, apenas isso.
E eu queria deixar agora uma pergunta, pros leitores do 7: que situação te fez abaixar a máquina?
* O nome desse artigo foi inspirado no documentário Abaixando a Máquina – Ética e Dor no Fotojornalismo Carioca. Vale muito, muito a pena mesmo assistir esse filme.
Foda Pri.
Eu desisti do jornal na época da faculdade pq meu limite era muito irritantemente pequeno.
E, por incrível que pareça, acontece de abaixar a câmera também em situações inversas à dor. Mas aí a gente senta no Fernando´s de novo e conversa com uma cerveja 🙂
beijo!
Carol
Pri,
Por um acaso da vida estavamos juntos no enterro da jovem assassinada pelo pai ,uma tarde chuvosa de domingo,plantão no começo, e eu que já tinha vindo de uma situação super hostil do enterro do pai,onde não pude fotografar,sem que em momento algum alguem falasse algo para mim,só nos olhares me perseguindo,e ficamos no nosso papel de levar o material para o jornal; minha repórter super constrangida e emocionada.Saio de lá e encontro a familia da vitima no velório e me auto-indago(poxa aqui tá melhor pra fotografar!),mas será q é essa a pergunta mesmo,concordo com você no post,cada pessoa tem seu limite.Contudo alguns mesmo chamados de urubus,carniceiros continuam sem problema algum a fotografar e pasmem procurando novos angulos para retratar a tragédia,afim de levar “a foto”.Tenho sentimentos e me sinto pessimo com esses tipos de situações,mas a profissão é dura,sem piedade a concorrência tá ali do seu lado .e ai!!você vai parar de fotografar?;não, nunca mesmo constrangido.Na situação fiquei até a saída do caixão para a sepultura torcendo que alguém da familia viesse ao meu encontro para dizer a frase mágica: ” A familia pede que não fotografe!”.E foi isso que aconteceu ,e respirei aliviado sai quase correndo do lugar.BELO POST!!!VIDA LONGA AO 7!!!
Clelio, a gente inclusive conversou nesse dia sobre como é ruim e difícil fotografar enterro, ne? Mas como você mesmo falou, faz parte da nossa profissão.. cabe a gente fazer isso da forma mais respeitosa possível.. não falo só em relação aos familiares, mas em relação à nós mesmos.. Muito bom teu comentário aqui.. ainda mais por tu ter vivido ao meu lado uma dessas histórias.
eu trabalho em assessoria e, naturalmente, minha rotina é um pouco diferente da que encontramos nas redações. mas já participei de ações em comunidades, centros médicos e casa de acolhimento, muitas delas com crianças em situação delicada. “cuidado com o que vai registrar” é a saudação de praxe, às vezes em tom de ameaça, e o trabalho se mostra desafiador. existe a orientação formal, mas mesmo não havendo imagino que minha postura continuaria sendo respeitosa. “existem formas e formas de se fazer…”, como bem frisou priscilla.
um contraponto interessante é o fato de haver coberturas em que a exposição é total, mas nem por isso soa desrespeitosa. um bom exemplo disso é a denúncia de uma potencial pandemia de XDR-TB (um tipo de tuberculose resistente a medicamentos), documentada em vários lugares pobres do mundo pelo fotógrafo james nachtwey (ver este vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=cB69Fh6qdYw). acredito que as fotos despertam muito mais sensibilização do que constrangimento.
a carreira de nachtwey, que acumula mais de 20 anos de experiência no registro de conflitos, rendeu inclusive o ótimo documentário “war photographer” (é possível baixá-lo via torrent). a certa altura, ele conta que às vezes se cria um pacto silencioso entre fotógrafo e fotografado; que quando o respeito é evidente as pessoas percebem (acho que foi o que ocorreu com priscilla) e de alguma forma entendem que o registro simboliza algo maior.
quais são os limites? assim como vocês, também não sei. mas é importante alimentarmos sempre essa reflexão em nossos corações. seja abaixando a câmera ou fazendo a foto, acho que já estaremos trilhando o caminho certo se tomarmos a decisão considerando o respeito ao próximo.
é isso aí Chico! Belo texto!!
Parabéns pelo texto e pela reflexão.
Querida Priscila faço a Ronda Policial aqui na Folha faz tempo , ja passei por poucas e boas adoro o que faço , faço com prazer , com amor , tive uma matéria na Faculdade de Fotografia que chamava Piscologia da Imagem incrivel ela ja valeu pelo curso me ajudou muito , bem respondendo a pergunta , uma vez em um homicídio em Camaragibe Região Metropolita um homem matou a mulher por ciumes , quando cheguei o pai da vitima (a mulher morta) cheia de tiros no chão, chegou ao meu lado e disse: Meu filho pode fazer a foto , pode fazer o seu trabalho eu entendo ??? como o pai entende uma coisa assim ??? eu não entendi , baixei a camera , foi dificil aquele pai olhando pra mim e eu fotografando a filha dele no chão , tive que trazer a foto mais não dificil m belo texto parabéns bjs Maurício Ferry
Baixar a câmera é apenas um ato simbólico. Vários outros comportamentos podem ser mais ofensivos do que o próprio ato de fotográfico, ainda que sob o manto do dever profissional. Certo mesmo é que o espaço do outro nem sempre é bem determinado, pois varia de pessoa para pessoa, em circunstâncias diversas. Assim o viver humano sempre ocorrerá um ultrapassar limites. As escolhas devem obedecer às bases morais e éticas de cada um, aceitando e assumindo todos os riscos pertinentes.
Parabéns! Belíssimo texto. Sua reflexão foi extremamente espetacular! Aplausos para você.