Texto escrito para o 10º Paraty em Foco
“Nossa relação com o mundo é arrogante. Nós nos colocamos acima, pensamos dominar. Os artistas nos mostram que isso não existe. Nós estamos em função das coisas, ou os termos são recíprocos”.
Essa observação feita por Agnaldo Farias, ainda em 2001, em uma conferência sobre tendências da arte contemporânea no Brasil, fala do lugar da arte e do lugar especial do artista na tentativa de construir uma relação mais sensível entre nós e o mundo, as nossas rotinas, a natureza e – por que não usar uma palavra tão gasta? – o desenvolvimento, incluindo aqui o desenvolvimento das nossas narrativas pessoais. Crítico, curador, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, consultor do Instituto Tomie Ohtake, Farias tem uma longa história de dedicação à pesquisa sobre literatura e artes plásticas mas, só nos anos mais recentes, tem dedicado seu olhar à fotografia.
Talvez por isso um de seus dois momentos de participação na programação oficial do Paraty em Foco 2014 atenda pelo humilde título do workshop “Lições de um outro lugar ou Análises de obras fotográficas por parte de um ignorante em fotografia mas não de todo em imagens, fotográficas ou não”.
Em suas entrevistas, ele ressalta que a arte contemporânea está nas mídias, pode ser tecnológica e de alto alcance, como os smartphones, e tem cada vez mais contato com as pessoas. No entanto, essa relação entre o público e a arte ainda é muito instável e temerosa. Muitos aspectos ainda distanciam o público da produção contemporânea e o mercado da arte é um deles.
Ver Farias falando sobre a arte é entender que esses processos de criação têm uma inteligência própria, mas muito alcançável porque está inscrita em cada um de nós. Seu trabalho é um degrau para que possamos perder o medo da arte. “[A arte contemporânea possui] Trabalhos que tratam aspectos candentes na nossa vida, nos atingem de muito perto, são temas palpitantes. Não são simples, porque nós não somos simples. Não conseguimos entender a nossa economia, o nosso dia a dia, nossa vida, nossos cotidianos, porque a arte deveria ser diferente?”, questiona em entrevista à Revista Zum.
“A arte contemporânea é quase terra de ninguém, uma fronteira”, afirma apontando a produção contemporânea em seu lugar de entremeio, destacando o cruzamento cada vez mais intenso entre artes visuais, literatura, música, dança, teatro, cinema. “Essa é a fertilidade dela [a arte contemporânea]. Virou um lugar que pode ser frequentado por todo mundo que não se sinta encaixado, não se sinta à vontade em territórios há muito percorridos. Por isso mesmo, ela é fronteira, ela é zona de desbravamento, e ela indubitavelmente diz respeito ao nosso futuro, ao futuro do próprio ser”.
Para Farias, durante muito tempo, a fotografia esteve confinada no universo dos fotógrafos, que se retroalimentam da própria fotografia, seus conteúdos, seus cânones. Nessa compreensão, compara a fotografia com uma forma de deísmo, mencionando os conceitos de registro, instante, entre outros, como espécies de dogmas em que a fotografia investiu durante muito tempo, desde o seu surgimento até, por exemplo, a tradição bressoniana, de Capa ao fotojornalismo e a fotografia pré-anos 60.
Nesse contexto, o pesquisador faz referência a alguns fotógrafos que reconhece como pontos fora da curva, como Man Ray e Geraldo de Barros, Oiticica, etc. E aponta que desde os anos 60, a fotografia começa também a ser utilizada mais intensamente por artistas que não são fotógrafos como Andy Warhol. Sobre isso, lembramos os questionamentos sobre a prática fotográfica levantados por André Rouillé e sua proposta de divisão entre a arte dos fotógrafos e a fotografia dos artistas. Para Rouillé, “a arte dos fotógrafos está no campo da fotografia e significa um processo artístico dos fotógrafos, e a fotografia dos artistas, como já esclarece o nome, é o uso da prática fotográfica pelos artistas em resposta às indagações que surgem nesse meio”. Mas aqui, em meio ao olhar generoso de Farias, focar nesse dilema parece recorrer ao debate sobre quem veio primeiro o ovo, a galinha, o milho, etc.
Em suas pesquisas, Agnaldo Farias nos aponta o processo de complexificação, ao longo dessa história de experimentação, da fotografia não como prática, mas como modo de pensar. A fotografia entra na arte contemporânea e se aglutina com ela, nos entregando novos resultados, como o fotojornalismo que entra no espaço fechado das Bienais e como a perda de sentido na própria divisão entre a arte dos fotógrafos e a fotografia dos artistas.
Em sua fala para o Paraty em Foco, Agnaldo apontará a fotografia como uma prática poética, rica em lirismo, olhar alinhavado no belo trabalho de Masao Yamamoto. “As fotografias de Masao Yamamoto têm pequenas dimensões, a maioria delas, como declara o artista, cabe na palma da mão, como um pequeno objeto que recolhemos e olhamos com cuidado, como um pássaro que agarramos com surpresa e ternura, desejando acalmar o ritmo frenético do seu coração”, destaca o crítico de arte, que assina o catálogo da exposição de Yamamoto levada a São Paulo, em abril deste ano, pela Galeria Guarnieri.
Para Agnaldo Farias, Masao é o autor de uma fotografia que se debruça sobre o detalhe. Na contramão dos grandes paineis que tomam cada vez mais as exposições fotográficas contemporâneas, Masao caminha pelo sinuoso e delicado percurso das fotografias de pequena escala. Imagens de palma de mão, tocáveis e vulneráveis, mas ricas como pequenas joias. Produzidas analogicamente e super manipuladas pelo artista, elas pedem um olhar apurado, aproximado, e quase carinhoso.
Farias traz ao Paraty a discussão sobre a poesia de flores e pássaros, voos e árvores, mulheres e gatos no quase preto e branco de Masao, um artista que não se enquadra nos modelos de fotografia de natureza que nos foram inicialmente ensinados. Na introdução do texto “Lições das Coisas”, Agnaldo fala do papel dos objetos na vida contemporânea e lembra Barthes. “Tal homem tal objeto. Os objetos, deles disse Barthes, “são a nossa assinatura no mundo”, alertando ainda que “não devemos nos esquecer que um objeto é o melhor mensageiro de um mundo que está por cima da natureza”. A fotografia de Masao, como pequeno objeto artístico, riqueza restrita quase à palma de uma mão, parece querer nos revelar segredos, faz conosco o que Duchamp fez com a obra-instalação Étant donnés (Given: 1 The Waterfall, 2. The Illuminating glass). Nela, com muita delicadeza, o artista guarda uma descoberta que, como a fotografia, precisa de olhos atentos. A fotografia de Masao, sua melhor mensagem, nos torna humildes.