Quando João Cabral de Melo Neto se fez poeta, passou a ser reconhecido como “o poeta engenheiro”. Fazia versos como quem planejava, projetava, construía, lapidava pedra. Foi um dos precursores do que chamaram de poesia concreta: a poesia visual que teve em Augusto de Campos e na coca-cola-cloaca de Décio Pignatari alguns dos seus principais ícones. Era um poeta espacializante, que via o texto como uma paisagem a ser conquistada, remodelada. E trouxe, com sua clareza de ver o mundo, uma revolução para a literatura nacional. Perfeccionista, rigoroso na geometria, escreveu e ensinou que a forma não esconde o conteúdo e que o conteúdo pode ser tocado também através dela.
Pensei bastante nisso tudo no último fim de semana, quando o 7 teve o prazer de receber em Recife a visita do fotógrafo paulistano Felipe Russo que, de passagem rápida pela cidade, foi generoso ao abrir o seu acervo e ler seu portfólio junto com o público que marcou presença no auditório do Centro Cultural Correios para uma conversa simples e direta. Como a fotografia às vezes parece ser.
Felipe apresentou ao público alguns de seus trabalhos mais recentes, todos estabelecendo um forte diálogo entre si, com imagens que refletiam uma são paulo concreta, povoada de edifícios decadentes e vazios silenciosos que marcam estruturas que, há um tempo, foram capazes de fazer a propaganda de um estilo de vida e de um modelo de construção de cidade.
A fotografia de Felipe tem um olhar direto, apesar de ser feita com uma 4×5, é clara. Caminha por um trajeto que faz um traço à parte do que tem sido exaustivamente valorizado e taxado como fotografia contemporânea, e no entanto, é contemporaneidade em todas as suas bases. Chega a incomodar os olhares já pré-moldados a uma fotografia confessional, experimental, acomodada no condicionamento de alguns discursos artísticos.
A fotografia de Felipe se assemelha mais à arte do ofício que João Cabral transformou em poesia como nenhum outro, sem lirismo e sem ornamentos, que deve ser tocada pela métrica. Lembrei-me de O Profissional da Memória, essa poesia cabralesca que se fez presente entres os prédios e descobertas que 10 anos, amanhã e Centro me permitiram tocar. No texto, João Cabral fala de um poeta que se predispõe a construir um acervo de memória. Para isso, faz uso de um método científico de memorização, injetando as memórias em si mesmo, a fim de garantir sua durabilidade.
O resultado é que, no momento em que tece todos os seus fios de lembranças, o poeta se dá conta de que não consegue impedir que a memória se dilua e escorra plenamente de forma orgânica e sem existência de vacina. E no meio desse desamparo, se encontra com a memória involuntária que todos guardamos, recuperada pelos cinco sentidos que marcam apenas o que se deve/pode recuperar.
10 anos, amanhã é como um tecido de memórias injetado em quem vê o ensaio. Um método fotográfico que nos guia para a reconstrução de passados que a cidade de São Paulo viveu, passados permanentemente intocáveis. A série é uma pesquisa sobre os vestígios que algumas histórias, contextos e pessoas deixaram na paisagem urbana, tão familiar a qualquer um de nós.
É com essa impressão que vejo a obra de Felipe e sua busca quase religiosa pelo encontro cotidiano com o que deve ser apresentado. Felipe e sua “postura de crença” nesse encontro promove os reencontros que vivemos com narrativas complexas e ricas de sentido, mesmo que o sentido não se faça em frase feita. Seu sentido se encontra no silêncio, corporificado e contemplativo, capaz, paradoxalmente, de produzir um eco na nossa cabeça.
Seu método de fotografar (no máximo 10 chapas por dia, no mínimo duas saídas por semana) mostra a busca exaustiva e a transpiração que evidenciam ensaios construídos com esmero e atenção ao que o cerca, aos lugares exatos, aos momentos. A exemplo da foto que abre esse post. Suas construções nos fazem quase tocar o concreto que aconteceu mas que não acontece mais. E essa perda é capaz de provocar os mais diversos sentimentos, inclusive o encontro com a melancolia.
Sobre a infância berlinense, o filósofo Walter Benjamin uma vez escreveu “Assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar, mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo”. Vivemos, esquecemos e rememoramos. Essa é uma condição de existência. A memória, como o profissional da memória entende no final, não é metodologia, é permissão. Somos aquilo que acreditamos lembrar e o que preferimos esquecer. Felipe constrói com suor uma memória que nunca será alcançada, mas que é porta de contato para memórias e enredos que nós mesmos construímos.